sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

Reportagem Especial - A história dos judeus no Brasil

Estamos iniciando uma reportagem especial sobre a história dos judeus no Brasil. Dividida em 7 partes, mostraremos a saga do povo israelita que saiu da Europa buscando melhores condições de vida e que ao longo dos séculos sofreram vários reveses, mas que também ajudaram na formação de nossa nacionalidade e no desenvolvimento desta.
Essa reportagem para melhor compreensão do leitor está divida em 7 tópicos:
1ª parte - Os judeus no descobrimento do Brasil e as primeiras explorações (1500-1515)
2ª parte - Judeus no período colonial (1515-1570)
3ª parte - As primeiras discriminações (1570-1630)
4ª parte - Os judeus no domínio holandês (1630-1654)
5ª parte - Período pós-holandês e as grandes perseguições (1654-1770)
6ª parte - Período pré-assimilatório e da assimilação dos judeus (1770-1855)
7ª parte - Período precursor da Idade Moderna até os dias de hoje (1855-2008)
A cada início de mês, um novo capítulo será publicado contando passo a passo o surgimento e o desenvolvimento do judaísmo no Brasil, desde os primórdios do descobrimento até os dias atuais.
Você está mais que convidado para nos acompanhar nessa viagem de volta ao tempo e conhecer um pouco mais sobre a fascinante e batalhadora história desse povo milenar que lutou arduamente para manter vivas suas tradições e a própria existência.
A história dos judeus no Brasil
A história dos judeus no Brasil constitui um caso único, pois de nenhum outro país se pode dizer que nele os judeus tenham vivido ao longo de toda a sua existência, contribuindo substancialmente para o seu desenvolvimento econômico e social.
Desde o descobrimento do país - evento este do qual participaram, tendo inclusive ajudado nos seus preparativos - até os dias atuais, os judeus, quase sem intervalo, estiveram integrados nos processos de formação de nossa nacionalidade.
Mas é importante enfatizar que, embora os judeus tenham representado continuamente uma parcela de nossa sociedade, a sua história não acompanha simplesmente a do Brasil. Longe de um esperado paralelismo, o que se verifica é a existência de inúmeros desvios, os quais não raro atingem um grau de contraste.
Por exemplo, mencionamos o período da ocupação holandesa, que, se traduziu em um fracasso para o país, mas no entanto, constituiu-se no auge do desenvolvimento da coletividade judaica local, dando-se o inverso com a fase seguinte, quando, após a expulsão dos invasores, sobreveio a deteriorização, com o conseqüente êxodo e a dispersão dos judeus do Brasil.
De forma semelhante, as intensas perseguições religiosas da primeira metade do século XVIII, de poucos efeitos diretos sobre a população geral do país, tiveram influência específica marcante sobre a vida dos judeus brasileiros.
Finalmente, sob outro aspecto, a implantação de um regime liberal no país, no início do século XIX, culminando com a proclamação da Independência, e que resultou tão favorável ao progresso geral do país, significou porém a assimilação quase total dos judeus, efeito este que deve-se considerar negativo do ponto de vista da preservação da comunidade judaica brasileira.
Por esses motivos, o estudo da história dos judeus no Brasil deve-se orientar segundo os fatos e acontecimentos históricos que tenham repercutido especificamente nas condições de vida individual e sobretudo coletiva dos judeus.

A história dos judeus no Brasil - 2ª parte
Judeus no período colonial (1515-1570)

A maiorias dos historiadores consideram que os anos que compreendem entre 1500 e 1530, foi um período de indiferença e de falta de interesse por parte da Coroa Portuguesa no aproveitamento em explorar o Brasil.
Mas trata-se de um equívoco tal entendimento, pois conforme mencionado na primeira parte desta reportagem, o Brasil chegou a ser arrendado a uma empresa comercial e administrado por Fernando de Noronha.
Os fatos revelam que em 1515, o contrato de arrendamento feito a Fernando de Noronha não foi renovado e nenhuma explicação foi dada sobre o motivo. Mas na verdade, supõe-se que a Coroa Portuguesa, tomou consciência de que teria que tomar conta do enorme território que agora lhe pertencia, se não quisesse dispor-se ao risco de perder o comércio com ele e também a soberania.
Tal perigo era real, pois, àquele tempo, a costa brasileira era também freqüentada por contrabandistas franceses, que traficavam com os indígenas, ameaçando dessa forma o monopólio português do pau-de-tinta, ou seja, o pau-brasil.
Colonização: As primeiras tentativas
No ano de 1516, o rei de Portugal, Dom Manuel I, baixou um decreto segundo o qual todo aquele que emigrasse para o Brasil receberia, por conta da Coroa, o equipamento necessário para construir um engenho de açúcar, incluindo também o envio de um perito à nova colônia a fim de dar a devida assistência.
Mas mesmo com as facilidades concedidas pelo governo português, eram poucos os colonos cristãos que se interessavam em emigrar para o Brasil - provavelmente em virtude da atração que a Índia continuava a exercer sobre eles - razão por que, ao lado de criminosos, condenados ou exilados, se destacaram os voluntários judeus, constituindo a maioria dos imigrantes.
De acordo com dados históricos, as providências tomadas pelo governo português surtiram os efeitos desejados, pois alguns documentos datados do ano de 1526 mencionam os direitos alfandegários pagos em Lisboa sobre açúcar importado do Brasil.
A introdução da cana de açúcar e a participação dos judeus

A pressuposição de que os judeus seriam a maioria entre os primeiros colonizadores do Brasil é incontestavelmente corroborada pelo fato de que a produção do açúcar já vinha sendo, desde muitos anos antes, a ocupação preferencial dos judeus das ilhas da Madeira e de São Tomé, de onde provavelmente foi a cana de açúcar transplantada para o Brasil.
Assim sendo, nesse período entre 1515 e 1530, em que a Coroa Portuguesa fez os primeiros ensaios de ocupação do território brasileiro, parece ter cabido aos judeus uma parcela fundamental no cumprimento dessa tarefa, como primeiros colonizadores do Brasil.
Expedição de Martim Afonso de Sousa
Verificando que as esparsas expedições e os reduzidos ensaios de colonização, empreendidos no período de 1515 a 1530, eram insuficientes para afastar os traficantes estrangeiros do Brasil, já agora acrescidos de espanhóis, que, além de negociarem, mostravam intenções de aqui se estabelecerem, o rei de Portugal, D. João III, passou a uma ação decidida, visando a uma colonização sistemática e efetiva de ocupação do território brasileiro.
Dessa forma, no ano de 1530, o rei enviou uma armada com 400 homens, sob o comando de Martim Afonso de Sousa, a quem nomeou "Capitão-mor e Governador das Terras do Brasil", dando-lhe autorizações especiais de muita amplitude, que abrangiam "o direito de tomar posse de todo o país, fazer as necessárias divisões, ocupar todos os cargos, exercer todos os poderes judiciários, civis e criminais".

A expedição de Martim Afonso de Sousa, cumprindo à sua missão em 2 anos, cobriu todo o litoral brasileiro, estendendo-se desde o Amazonas até o rio da Prata.
Merece notar, todavia, que Martim Afonso de Sousa concentrou as suas atenções em dois pontos do litoral, pontos esses que perdurariam ao longo de toda a história do Brasil como focos de progresso: o Nordeste (Bahia-Pernambuco) e o Sudeste (Rio-São Paulo).
No que diz respeito à questão dos judeus do Brasil, em relação a existência desses dois centros econômicos importantes faz-se necessário duas observações: uma de caráter essencial, relativo às migrações internas dos judeus, os quais, sempre que acuados pelas perseguições no Nordeste, escolhiam em boa parte como refúgio a província de São Vicente; o outro, de caráter ilustrativo, consiste na circunstância de, em cada um dos referidos pontos - Bahia e São Vicente (São Paulo) - ter Martim Afonso de Souza encontrado um judeu influente - respectivamente, Caramuru e João Ramalho - que lhe prestasse decisivo auxílio na sua tarefa colonizadora.
Capitanias Hereditárias
Tendo verificado, pelas sucessivas expedições dos anos anteriores, a enorme extensão litorânea do Brasil e julgando os meios até então empregados insuficientes para assegurar a soberania portuguesa na colônia bem como para promover o seu povoamento, resolveu D. João III, em 1532, criar capitanias situadas ao longo da costa, medida que pôs em prática entre os anos de 1534 e 1536, mediante a divisão do litoral entre o Maranhão e Santa Catarina em 14 lotes, de 10 a 100 léguas de costa, doando essas 14 capitanias hereditárias a 12 "donatários", escolhidos entre os nobres e mais valorosos súditos, os quais deviam explorar e colonizar a sua custa as regiões que lhes haviam sido confiadas, tudo fazendo pelo seu rápido e seguro progresso.
Conseqüentemente, gerou-se um motivo maior de estímulo para a vinda de judeus ao Brasil. Os donatários, desejosos em tornar prosperas às suas capitanias, buscavam atrair colonos patrícios, apesar dos portugueses cristãos ainda darem preferência a Índia. Não restava aos donatários senão recorrer mais uma vez às famílias israelitas, às quais concediam direitos e vantagens iguais aos dos demais colonos.
É digno de nota, que os judeus se revelaram excelentes colonizadores: hábeis no trato com os gentios, a cujos hábitos e línguas logo se adaptavam, passando a contar rapidamente com a sua amizade.
Dessa forma, as possibilidades de progresso das capitanias dependiam em grande parte dos judeus, e, graças a esta circunstância, puderam eles gozar de ampla liberdade de costumes.
Das capitanias, apenas duas se desenvolveram com resultados consideráveis: Pernambuco e São Vicente, justamente nos já citados dois focos de progresso - Nordeste e Sudeste.
Extraordinária prosperidade conheceu a capitania de Pernambuco, superiormente administrada por Duarte Coelho Pereira. Tendo percebido, pelas tentativas desenvolvidas nos anos anteriores, que a região era favorável à agricultura - fumo, algodão e cana de açúcar - especialmente para esta última, resolveu Duarte Coelho implantar o cultivo intenso e sistemático de cana e incrementar a indústria açucareira.
Nesse sentido, determinou ele o estabelecimento de grandes plantações de cana de açúcar e a construção de engenhos, ordenando trazer, das ilhas da Madeira e de São Tomé, mecânicos, capatazes e operários especializados - que em sua maioria eram judeus - para dirigirem engenhos e estimularem a produção do açúcar.
Não se deve esquecer o nome do judeu Diogo Fernandes, que foi o maior técnico trazido por Duarte Coelho ao Brasil.
Governos Gerais
Por vários motivos - tamanho excessivamente grande dos territórios, falta de recursos para rechaçar os ataques dos selvagens ou as invasões estrangeiras, falta de entendimento entre os donatários - falhou totalmente o sistema de colonização das capitanias, mesmo com as exceções que representavam as de São Vicente e Pernambuco.

Sendo assim, em 1548, D. João III decidiu criar um governo geral, com sede na Bahia, capaz de, em torno dele, reunir os esforços dos donatários, dando-lhes favor e ajuda e deles recebendo auxílios, inclusive gente e mantimentos.
Com a implantação do novo sistema de governo em 1549, a situação dos judeus no Brasil não sofreu alteração, muito embora nessa mesma ocasião se fixassem no país os jesuítas.
As condições eram tais, que estes se viram obrigados a uma política de transigência e prudência, merecendo destaque a atividade do padre José de Anchieta e do primeiro bispo do Brasil - Pero Fernandes Sardinha - que se opuseram energicamente à instalação de tribunais inquisitoriais no país e a quaisquer outras formas de discriminação e perseguição.
Na escolha de ou perderem as esperanças de colonização do Brasil ou levarem a bom termo a missão de que se achavam incumbidas, as autoridades optaram pela última alternativa e, para tanto, tiveram que fazer vista grossa quanto à aplicabilidade das exigências do 5º Livro das Ordenações da Inquisição e negligenciar as reclamações dos Inquisidores.
Esse cenário de tolerância contrastava vivamente com a onda de ódio e discriminação que varria Portugal, onde crepitavam ininterruptamente as fogueiras dos autos de fé. Dessa forma, é compreensível o efeito que surtiu sobre os judeus de Portugal as notícias ali chegadas sobre a vida judaica no Brasil. Atacados pela fúria avassaladora de perseguição religiosa, sentiam-se os judeus de Portugal impelidos a tentar uma nova vida no Brasil, que se lhes afigurava como refúgio seguro, onde poderiam concretizar-se os seus anseios de liberdade, as suas esperanças de paz e de tranqüilidade.
Em tais circunstâncias, tudo favorecia o estabelecimento de uma intensa e ininterrupta corrente imigratória de judeus portugueses para o Brasil, onde, prosperando rapidamente, passaram a formar numerosos núcleos, dando mesmo início a uma vida coletiva que com o tempo viria assumir nitidamente características judaicas, como o testemunham as esparsas referências encontradas sobre uma sinagoga que funcionava em uma casa de propriedade do cristão-novo Heitor Antunes, na cidade do Salvador e sobre uma outra que fazia parte de um centro marrano em Camaragibe, Pernambuco, capitania esta que inclusive chegou a contar com um rabi - Jorge Dias do Caia, cristão-novo.
Caramuru e João Ramalho: Judeus?
Martim Afonso de Souza, ao deter-se com especial interesse nas regiões da Bahia e de São Vicente, teve a sorte de encontrar nesses dois pontos duas extraordinárias figuras, respectivamente Caramuru e João Ramalho, que lhe prestaram decisiva ajuda na sua função iniciadora de colonização do Brasil. A ambos é atribuída ascendência judaica e são considerados os primeiros colonizadores efetivos do país.
Caramuru

Sobre o aparecimento de Caramuru - cujo verdadeiro nome era Diogo Álvares Correia - existe a seguinte lenda: Em 1509 ou 1510, um navio português naufragou junto da atual Bahia de Todos os Santos. Quase todos os homens morreram afogados ou foram devorados pelos índios Tupinambás. Entre os poucos que restaram para serem sacrificados posteriormente, em espetáculo festivo, estava Diogo Álvares Correia. Quando se aproximava a hora de ser sacrificado, uma idéia relampejante salvou-lhe a vida: disparou o mosquete que retivera do naufrágio e matou um pássaro em pleno vôo. Os índios que presenciavam a cena foram tomados de grande temor, pondo-se a gritar: "Caramuru! Caramuru!", o que, na sua língua, significava "homem do fogo" ou "filho do trovão". Há quem considere, talvez com mais acerto, que o apelido Caramuru se deriva do fato de ser esse o nome com que os indígenas designavam um peixe comum no Recôncavo da Bahia, a moréia, freqüentadora das águas baixas das locas, numa das quais teria sido encontrado Diogo Álvares depois do naufrágio. Por este fato, Diogo Álvares Correia passou a ser altamente considerado pelos índios que, daí em diante, o respeitavam como a um chefe.
Posteriormente, Caramuru casou-se com Paraguassu, filha do chefe Taparicá, com o que se tornaram mais íntimas e sólidas as suas relações com os indígenas.
Quando da chegada de Martim Afonso de Souza, Caramuru serviu de intérprete e elemento de ligação entre esse primeiro Governador do Brasil e os chefes índios, acertando medidas para a introdução de trabalhos agrícolas na região com o aproveitamento de sementes trazidas por Martim Afonso.
A fama e o prestígio de Caramuru tornaram-se tão grandes junto a Coroa Portuguesa, que, ao ser nomeado, em 1548, o primeiro Governador Geral do Brasil - Tomé de Souza - o rei dirigiu-se em carta a Caramuru, pedindo sua indispensável cooperação.
Caramuru atendeu ao pedido do rei e tão proveitosa foi a ajuda prestada a Tomé de Souza que, em meio a uma plena cooperação dos índios, pôde rapidamente ser fundada, em 1549, a cidade de Salvador, Capital do País, no lugar onde anteriormente Caramuru estabelecera a aldeia "Vila Velha".
Quanto a judaicidade de Caramuru, na falta de quaisquer provas, muitos historiadores a admitem levados por simples presunções, inclusive pelo fato de que, segundo muitas indicações, era tradicionalmente israelita o nome de família Álvares Correia.
João Ramalho

Embora o historiador Rocha Pombo admita que João Ramalho tenha vindo antes da descoberta do Brasil, possivelmente em 1497, época da expulsão dos judeus de Portugal, a suposição mais aceita é a de ter ele aportado em 1512, salvo de um naufrágio na costa de São Paulo.
Tal como Caramuru, conseguiu João Ramalho captar depressa a amizade dos indígenas, merecendo especialmente a simpatia de Tibiriçá, o todo-poderoso chefe dos índios Guaianases, que, posteriormente, lhe deu em casamento sua filha Bartira.
Quando, em 1532, Martim Afonso de Souza alcançou São Vicente, lá encontrou João Ramalho que, havia vinte anos, vivia com os indígenas. Induzido pelas informações de Ramalho acerca das características do clima e do solo da região e estimulado pela situação estratégica da baía, Martim Afonso, com a ajuda substancial de João Ramalho, fundou então a primeira colônia agrícola, formada de duas povoações: São Vicente - na planície da ilha do mesmo nome, e Piratininga - na região serrana do continente, ao lado da aldeia de Santo André da Borda do Campo, onde vivia Ramalho com sua família e seus aliados.
Em consideração aos importantes serviços prestados por João Ramalho à capitania de São Vicente, Martim Afonso conferiu-lhe o título de "guarda-mor", deu-lhe poderes sobre toda a terra de Piratininga e, finalmente, antes do seu regresso para Lisboa, elevou-o ao cargo de "Capitão-mor".
No que toca à origem judaica de João Ramalho, muitas são as suposições:
Há historiadores que deduzem sua judaicidade ao argumentar que este nunca participou dos exercícios religiosos dos jesuítas e de que, ao cair seriamente doente, recusou as consolações religiosas, fatos estes que são interpretados como indicando pertinência judaica.
Entretanto, a grande maioria baseia sua alegação de João Ramalho ser judeu pelo sinal, em forma de ferradura, que este incluía na sua assinatura, entre o prenome e o nome de família. Sobre o assunto, existe uma verdadeira literatura, sendo as mais desencontradas as interpretações dadas com respeito ao referido símbolo. Enquanto alguns o consideram um mero ornamento ou simples talismã, e outros o julgam um hieróglifo que testemunharia a origem egípcia de Ramalho, a maioria o qualifica como letra hebraica; mesmo estes últimos, porém, divergem entre si, achando uns que a letra é um "caf", representando a letra inicial da palavra "cohen" (sacerdote) ou da palavra "cabir" (forte) ou ainda da palavra "cafui" (cristão-novo), ao passo que outros consideram a letra como sendo um "bes", que seria a abreviação da palavra "ben" (filho), significando a assinatura - "João, filho de Ramalho" - e, finalmente, alguns admitem que se trate de um "resh", letra inicial do nome Ramalho.
Como se pode observar, a questão constituiu-se em objeto de amplas discussões, cujo desenvolvimento evidentemente não apresenta nenhum interesse especial a não ser o incentivo ou a satisfação da curiosidade sobre a ascendência étnica ou religiosa de João Ramalho.
O papel dos judeus no período de 1530 a 1570
O período de 1530 a 1570 é talvez o único em toda a história dos primeiros quatro séculos do Brasil, do qual se pode dizer que, no seu decorrer, a evolução da vida judaica se entrosou plenamente com a do país, numa cooperação ativa, uma coexistência pacífica e uma integração harmoniosa.
Para a formação do Brasil, esse período foi decisivo. No seu transcurso, fez-se sentir o poderio da metrópole, primeiro através das capitanias hereditárias e depois por intermédio do Governo Geral, que unificou politicamente o território, exercendo o poder da Coroa sobre o dos capitães-mores; simultaneamente, a língua portuguesa se impôs como elemento de coesão entre os núcleos esparsos do povoamento, coesão essa reforçada pela união espiritual desenvolvida pela extraordinária atividade dos jesuítas.
E é da maior importância que, durante esse excepcional período de expansão, os judeus tenham desempenhado um papel sobremodo honroso e atuante na vida econômica e social do país.


A história dos judeus no Brasil - 3ª parte
As primeiras discriminações (1570-1630)

No estudo anterior, pudemos identificar que entre os anos de 1530 a 1570 criaram-se todas as condições favoráveis para o estabelecimento de uma sólida comunidade israelita no Brasil:
1. Graças à intensa imigração e ao crescimento natural, o número dos judeus alcançou uma proporção considerável em relação à população total e suficiente para não haver risco de assimilação.
2. Havia bastante tolerância e liberdade para que os israelitas professassem abertamente suas práticas religiosas, ainda que, como é de se supor, em algumas situações com rituais sincretizados com o catolicismo.
3. As contínuas levas imigratórias de judeus portugueses exerciam um papel revigorante na crescente e nova sociedade judaica do país.
Com essa conjuntura positiva, se vislumbrava perspectivas seguras para que, no fim do século XVI, se solidificasse uma coletividade judaica numerosa e estável no Brasil.
Mas vários fatores adversos interferiram nesse processo de crescimento e fortalecimento da sociedade judaica no país.
Judeus portugueses com dificuldades para emigrar
Por volta do ano de 1570, houve uma mudança repentina na política emigratória de Portugal. As normas até então em vigor, extremamente liberais, tornaram-se muito restritivas e as permissões para emigrar, na maioria das vezes, só eram concedidas em troca do pagamento de um alto valor.

Mas alguns anos antes, em 30 de junho de 1567, na regência do Cardeal D. Henrique, já havia sido expedido o primeiro alvará que vedava a todos os cristãos-novos, sua saída do reino, seja por mar ou por terra. Mas esse posicionamento contra os cristãos-novos só tornou-se oficial em 1573, quando D. Sebastião reforçou essa proibição.
Quatro anos mais tarde, em 1577, o próprio D. Sebastião revogou as restrições, mediante o pagamento de 250.000 cruzados que custearam a mal sucedida expedição à África.
Mas essa fase de liberalidade pouco durou, pois em janeiro de 1580, o rei-inquisidor, D. Henrique, restabeleceu o alvará que proibia a saída dos cristãos-novos. Nesse mesmo ano, Portugal perdeu sua independência para a Espanha e sete anos mais tarde, em 1587, todas as leis anteriores que efetivamente proibiam a saída dos judeus, foram confirmadas.
Em julho de 1601, tendo em vista a situação de penúria do tesouro espanhol, foi concedida através de uma Carta-Patente, a autorização para que os judeus saíssem do reino, mas mediante o pagamento de 200.000 cruzados.
Mas, mais uma vez, essa fase de generosidade durou pouco, pois nove anos mais tarde, em março de 1610, foi proclamada uma lei que derrogou a concessão de saída, apesar das promessas de que a proibição não mais se repetiria.
Somente 17 anos depois, no ano de 1627, voltou a ser outorgada aos judeus uma autorização condicionada de saída e, finalmente, em 1629, a lei estabeleceu a livre saída do reino, mas para que esse benefício fosse concedido, os judeus tiveram que arcar com o pagamento de 250.000 cruzados.
Essas mudanças repentinas na política emigratória foram determinadas pelas constantes incompatibilidades entre a coroa e a igreja, pela precária situação das finanças do reino, que estimulava a freqüente extorsão do dinheiro judaico, em alternância com a necessidade de reter os judeus no território, já que, emigrando para outros países, eles concorriam para sua prosperidade, enquanto o próprio reino empobrecia, como chegou a confessar o Conselho de Fazenda: "estar o comércio empobrecendo e terem os homens de mais cabedal deixado o País".
Mesmo com todas as restrições de emigração impostas, não há dúvida de que a vinda dos judeus para o Brasil, oriundos de Portugal, permaneceu intensa. Essas proibições não impediam o êxodo, já que as crescentes perseguições em território lusitano incentivavam a busca de meios para driblar essas restrições, mas notadamente nos períodos em que mesmo os pagamentos de altas somas não eram aceitas pelas autoridades reais.

Na última década do século XVI, o fluxo emigratório deslocou-se predominantemente para a França e, mas notadamente, aos Países Baixos, onde o comércio prosperava e havia tolerância religiosa, fator que contribuiu para a crescente formação de uma grande comunidade israelita na cidade de Amsterdam, que foi cognominada de "Nova Jerusalém".
De um modo geral, a corrente migratória para os outros países europeus, especialmente a Holanda, eram preferidos por aqueles emigrantes de maior poder aquisitivo, enquanto o Brasil era destino final daqueles que pertenciam às camadas sociais mais modestas, sobretudo os que tinham inclinação para a agricultura.
De qualquer forma, o certo é que essa simultânea emigração de judeus portugueses, para o Brasil e os Países Baixos, propiciou o estabelecimento de um elo comercial e afetivo entre os judeus brasileiros e holandeses, o qual nos anos seguintes veio a ter importante repercussão político-social, decorrente do conflito de consciência em que se viram lançados os judeus brasileiros em virtude do triângulo Brasil-Portugal-Holanda que passou a dominar os seus interesses individuais e suas aspirações coletivas.
A inquisição no Brasil
Como já verificado anteriormente, as consecutivas restrições à emigração dos judeus de Portugal, as quais cobriram todo o período de 60 anos (1570-1630), não foram suficientes para impedir a entrada contínua de judeus em território brasileiro, onde cresciam não só em número, mas também em prosperidade.
Entretanto, outros fatores passaram a moldar a vida judaica no Brasil, até então tranqüila. Começaram a aparecer sinais de restrição à liberdade, que com o tempo se reforçaram, fazendo debilitar a vida coletiva judaica, exatamente quando parecia aproximar-se a sua consolidação, e forçando os judeus a retornarem, tal como ocorria em Portugal, a uma vida disfarçada, de forma que a prática de sua religião e tradições estavam restritas ao recesso do lar e com a devida cautela.

A primeira manifestação de intolerância verificou-se em 1573, na cidade do Salvador, onde um alto de fé foi instalado. Mas a primeira vítima desse sistema repressivo não foi um judeu, mas um francês que, acusado de heresia, foi condenado e queimado vivo.
Mas o estabelecimento de tal modalidade não originou os efeitos desejados, pois os autos de fé por si só não exerciam nenhuma comoção entre os nativos que estavam habituados à incineração de prisioneiros. Por outro lado, permanecia incompreensível para os não-judeus que se queimassem pessoas vivas por respeitarem e servirem outro D’us, o que estimulava uma simpatia com os prisioneiros da Inquisição. Tais fatores, encerraram brevemente a sua execrável tentativa. Dessa forma, o ambiente de tolerância foi restabelecido, inclusive com o apoio da opinião pública.
Contudo, no ano de 1591, veio ao Brasil o Santo Ofício, sendo essa missão conhecida como "Primeira visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça".
Permaneceu a Inquisição na Bahia durante dois anos, até 1593, seguindo então o Inquisidor para Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, onde ficou até 1595.
Transcorridos 25 anos, a Bahia, então capital da colônia, foi, entre 11 de setembro de 1618 e 26 de janeiro de 1619, alvo de uma nova visita do Santo Ofício, que ficou a cargo do Inquisidor de Évora, o bispo D. Marcos Teixeira.
Perante esta segunda comissão inquisitorial, foram delatados nada menos que 90 marranos, entre os quais muitos senhores de engenhos de açúcar.
Migrações internas
Faz-se necessário comentar que o Santo Ofício restringiu suas visitas ao Nordeste, nunca tentando instalar-se no Sudeste do país, talvez para não se expor a um fracasso completo, tendo em vista o ambiente hostil que certamente ali encontraria.
Essa conjuntura teria propiciado o primeiro movimento migratório interno dos judeus do Brasil.
É presumível que, mesmo anteriormente, se viesse processando, em condições normais, a disseminação dos judeus pelo território brasileiro, e isso sobretudo por motivos econômicos, pois não se ocupavam os judeus somente de agricultura; o seu senso inato de mobilidade e de ubiqüidade certamente os levara a monopolizar o comércio entre os núcleos rurais e urbanos, assim penetrando nas mais recônditas partes do país.
Mas essas haviam de ser migrações lentas e de caráter voluntário.
Já por ocasião dos inquéritos da Inquisição no Nordeste ocorreu de uma forma forçada, e em um ritmo rápido, saindo os judeus daquela região em direção a parte mais liberal da colônia, onde não havia preconceitos, e que era sobretudo a capitania de São Vicente, justamente o segundo foco de progresso do país, como ficou demonstrado nesse estudo em um capítulo anterior.
Intercâmbio judaico Brasil-Holanda
Não se sabe ao certo os reais motivos das visitas do Santo Ofício no Brasil, pois retornaram os inquisidores a Portugal sem que demonstrassem os efeitos dos inquéritos.
Presume-se que as mesmas tinham um fundo político, já que a Coroa portuguesa estava receosa quanto aos negócios dos cristãos-novos com a Holanda e quanto a indícios de que o inimigo encontraria no Brasil aliados.
A suposição tinha fundamento, e os registros da visitação de 1618-1619 revelaram, categoricamente, que, durante 25 anos, os marranos do Brasil vinham mantendo constante diálogo com os judeus confessos de Flandres e, em especial, com os ex-marranos portugueses que tinham fugido para Amsterdam.
As suspeitas foram reforçadas mais tarde com a criação da Companhia da Índias Ocidentais, aprovada no ano de 1621 pelo governo holandês. De ante do programa e dos poderes dessa Sociedade - entre os quais incluíam os de nomear e depor governadores, fazer tratados de aliança com os indígenas, edificar fortalezas e estabelecer colônias - e da circunstância de que o capital da empresa era constituído na maior parte com os recursos de judeus hispano-portugueses, era coerente desconfiar que o íntimo intercâmbio entre os judeus do Brasil e da Holanda pudesse vir a ajudar os propósitos conquistadores dessa última.
E a primeira prova dessa desconfiança por parte da Coroa portuguesa foi obtida no ano de 1624, quando os holandeses invadiram e conquistaram a capital do Brasil, a cidade de Salvador. A população judia, que na Bahia era então mais numerosa do que em qualquer outra cidade da colônia, submeteu-se prazerosamente aos conquistadores, com os quais vieram muitos judeus. Estima-se que cerca de 200 cristãos-novos aceitaram logo de imediato o domínio holandês e passaram a induzir os demais habitantes de origem israelita a seguirem o seu exemplo.
A coletividade judaica no período 1570-1630
Esse intervalo de 60 anos foi propício ao desenvolvimento e à prosperidade dos judeus do Brasil, mas, em contraste com o período anterior (1530-1570), ele não constituiu uma fase tranqüila de evolução.
Foi um período predominantemente tumultuado, cheio de sobressaltos e de reveses que, se não impediu o progresso material dos israelitas - os quais no ano de 1600 chegaram a ser donos de muitos dos 120 engenhos então existentes no Brasil – todavia, prejudicou a sua organização coletiva, que vinha tomando forma, e golpeou fundo as suas perspectivas de liberdade. Os fatos e circunstâncias característicos deste período podem ser assim recapitulados:
Crescente perseguição aos judeus em Portugal e restrição à sua emigração para o território brasileiro, o que provavelmente gerou entre os judeus brasileiros um ânimo adverso para com a mãe-pátria;
Surgimento de um auto de fé em Salvador (Bahia), embora sem conseqüências significativas, porém suficiente para suscitar entre os judeus brasileiros o conceito de que a colônia não estava imune a preconceitos e a ocasionais perseguições;
A chegada de duas comissões da Inquisição de Portugal, em 1591-95 e 1618-19, com os respectivos processos de acusações e denunciações, gerando um retrocesso na evolução da vida coletiva dos judeus brasileiros e a limitação das práticas religiosas ao circulo familiar e de uma forma velada;
A primeira migração forçada de judeus dentro do país, por motivos de perseguição religiosa - do Nordeste para a capitania de São Vicente;
O fracasso da invasão na Bahia, em maio de 1624, pois a conquista não chegou a durar um ano, findando com a derrota completa dos holandeses em 1º de maio de 1625.
Como conseqüência de todos esses fatos, os judeus do Brasil foram paulatinamente dominados por um sentimento de frustração, vendo como inúteis as suas ilusões e esperanças em viver com segurança e tranqüilidade na nova terra.
Desiludidos com Portugal - onde seus parentes e correligionários padeciam de privações e grandes perseguições - e já agora decepcionados com a vida na colônia, onde a princípio tudo parecia sorrir-lhes, mas onde passavam a avolumar-se indícios hostis, os judeus do Brasil, instintivamente, na procura de algum outro ponto de apoio, sentiam-se atraídos a um intercâmbio cada vez mais estreito com os judeus portugueses residentes na Holanda, onde a liberdade, no final do século XVI era total.
Sendo assim, os judeus brasileiros vislumbraram a possibilidade de uma vida melhor e digna graças a intervenção de uma outra potência da época, a Holanda.
Mas essa parte será objeto de estudo no próximo capítulo da História dos judeus no Brasil.

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